Como os Lopes criaram e comandam a Rochinha, que quer expandir seu domínio das badaladas praias do litoral norte paulista para todo o Brasil – e o mundo
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É um típico almoço de domingo na casa de José e Rosalina Lopes, 54 anos ambos, em São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Os seis filhos chegam. “A bênção, pai.” “A bênção, mãe.” Com a porta principal aberta, a família senta-se à mesa. Tem início mais uma reunião semanal de diretoria de uma das marcas mais badaladas de sorvete do país, a Rochinha, da qual são donos. Um dos assuntos preferidos são os sabores que irão vingar na próxima temporada. “Todo mundo gosta de banana. Tem que colocar banana. Jabuticaba eu adoro, não pode faltar ”, diz a filha Juliana, 34 anos, diretora de marketing. José faz o último comentário. “Dou liberdade a eles, mas quem bate o martelo sou eu... quer dizer, nós falamos tudo e depois ela dá a palavra final”, ri, olhando para Rosalina. “Também, com 37 anos de casados...”
Eles não seguem manual de gestão, nunca recorreram a consultores, e, no entanto, em 18 anos, conseguiram construir uma empresa sólida, presente em 650 pontos de venda, e com faturamento anual declarado de R$ 8 milhões. Com investimentos calculados em R$ 8 milhões na construção de uma nova fábrica, em São José dos Campos, interior de São Paulo, desejam expandir sua atuação para o Brasil todo — e mesmo para fora do país — e triplicar a produção para 200 mil picolés e três mil litros de sorvete de massa por dia.
Juliana, que trabalha no negócio desde os 13 anos, é quem irá cuidar da unidade. Seu marido, Eduardo, 35 anos, é a única pessoa com quem Lopes compartilhou a receita dos sorvetes Rochinha. Atualmente, ele comanda a produção junto com o cunhado Isaias, 28 anos, apelidado carinhosamente de “neném” pelos irmãos mais velhos. A decisão de ter um centro de fabricação em um local mais estratégico foi adiada por anos, pois a família não queria se separar. Evangélicos e unidos, todos participam do dia a dia da empresa. Cristofer, 35 anos, é o diretor financeiro. Sua esposa, Débora, 34 anos, trabalha como nutricionista junto com Ariane, a filha de 25 anos. Tiago, 30 anos, é diretor de logística. Apenas a caçula, Josiane, 21 anos, ficou de fora. Por enquanto. “Sim, há uma pequena pressão da família para que eu me envolva nos negócios. Mas, apesar de eu não querer ainda trabalhar lá, eu participo das decisões”, diz ela.
Tudo começou no início dos anos 90, quando o então pedreiro José Lopes decidiu fabricar picolés na cozinha de casa e vender nas praias de São Sebastião para complementar a renda da família. “A marca se chamava Lopes e cada picolé custava R$ 0,80. De repente, as pessoas passaram a querer cada vez mais meu sorvete”, lembra ele. Desde aquela época, o sabor de maior sucesso é o de coco, o preferido do fundador. Lopes e Rosalina colhiam as frutas do quintal e passavam noites em claro fabricando sorvete. “No começo, fechávamos as embalagens com ferro de passar roupa, um por um. Mais tarde, passamos a usar um saquinho e precisávamos torcer cada ponta, como um bombom. As digitais ficavam gastas”, diz Lopes.
Em 1992, ele conheceu Ademar Rocha, proprietário da Rocha, uma famosa marca na época. A amizade começou quando o pedreiro auxiliou na construção de uma das sorveterias da rede. De acordo com Lopes, Rocha, sabendo que ele comercializava picolés na praia, vendeu-lhe uma das ramificações de sua empresa, os sorvetes Rochinha. Para comprar o negócio, Lopes desfez-se de casa e carro, por um valor que afirma não recordar. Ele garante que a receita do sorvete Rochinha é a mesma dos picolés que preparava cuidadosamente em casa, e que, da marca Rocha, comprou apenas o nome.
Os quatro irmãos que herdaram os sorvetes Rocha contestam essa versão. “Eles contam toda uma história sobre a receita deles, mas sorvete caseiro o Lopes não consegue fazer. Eles sempre tentam falar da gente para sustentar a marca”, diz um deles, José Aparecido Medeiros, 55 anos. Lopes evita o contra-ataque. “Não queremos falar deles para não ter problemas futuros e mal-entendidos, o que já aconteceu. Nossa empresa e nossa receita são só nossas”, diz.
Dois anos depois de comprar o Rochinha, Lopes já havia recuperado o investimento inicial. Sua estrutura era composta de apenas dez vendedores ambulantes. “Eu ficava só em casa, fazendo os sorvetes, senão a produção não era suficiente”, afirma. Com o sucesso inicial, ele preparou-se para distribuir seus produtos por sorveterias de todo o litoral paulista. Mas ninguém quis apostar na marca emergente. “Eu insistia com as pessoas para que comprassem nosso sorvete, mas, como não adiantava, então eu mesmo resolvi investir”, diz. Com suas economias e um empréstimo bancário, ele abriu cinco pontos, de 1992 a 1996, dois no centro de São Sebastião e os outros nas praias de Maresias, Boiçucanga e Camburi. O primeiro deles, em Boiçucanga, exigiu um aporte equivalente, hoje, a R$ 30 mil. Para administrar as lojas, Lopes colocou cada filho em uma delas. “Surpreendentemente, o resultado foi o melhor possível, as pessoas aderiram ao produto”, afirma.
AMOR “Nós gostamos do que fazemos; esta empresa é uma bênção na nossa família” OLHAR “Nunca estudei administração; aprendi observando como as vendas e os clientes se comportavam” FAMÍLIA “Cada membro da família tem uma função e eu cobro as jornadas de trabalho e as metas que foram combinadas” CÁLCULO “Nós só mudamos de fábrica quando a capacidade de produção da anterior não é mais suficiente para abastecer os pontos de venda que nos procuram. Só fazemos apostas ‘certas’” PRODUTO “O que temos de mais precioso é o sabor do nosso sorvete: por isso não modificamos a receita e a forma de fabricação” PONTOS “Colocamos nosso produto nos melhores bairros e estabelecimentos. Isso nos diferencia das marcas grandes, que estão em todos os bares e padarias” |
No início dos anos 2000, a fábrica tinha se tornado pequena para a demanda de sorvetes que os Lopes recebiam. A venda estava restrita às cinco lojas no litoral e aos carrinhos na praia, mas não paravam de chegar pedidos de interessados em revender o produto em São Paulo. Foi, como sempre, em um almoço de domingo que a família tomou uma decisão importante: vender as cinco lojas. Havia uma motivação passional, pois Lopes e Rosalina desejavam reunir todos os filhos em São Sebastião. “Meu pai queria a família perto, e cada filho ficava em uma loja do litoral”, diz Juliana. Mas, racionalmente, também fazia sentido. Vendendo as lojas, haveria dinheiro para construir uma nova unidade e aumentar a produção.
A fábrica exigiu R$ 500 mil. Inaugurada no final de 2000, multiplicou a capacidade por quatro. Foi uma atitude arrojada, que, pela primeira vez, tirou a família da zona de segurança. “A decisão foi difícil. Nesse momento, mil questionamentos vêm à cabeça, sempre surge uma insegurança”, afirma Lopes. Com a produção de 70 mil picolés por dia, o projeto de atender aos pedidos da capital tornou-se viável. Durante quatro anos, os membros da família revezaram-se para fazer as entregas no litoral e em São Paulo. Não havia planejamento de distribuição nem se cogitava terceirizar o serviço de entrega. “Levávamos os sorvetes em uma Kombi velha, que toda vez pegava fogo. Íamos com um extintor de incêndio”, rememora Juliana.
Em 2005, Lopes recebeu um telefonema de um cliente, o administrador de empresas José Vicente Mazzarella, 43 anos, dizendo que gostaria de comandar a distribuição da Rochinha em São Paulo. “Sempre fui fã desses sorvetes, que conhecia da praia de Maresias. Tanto é que resolvi servir para 200 convidados na minha festa de casamento. Para minha surpresa, fez mais sucesso do que qualquer outra coisa. As pessoas se ajoelhavam falando que aquilo estava uma delícia. Não tive outra escolha: liguei para o seu José e me ofereci para ser seu representante em São Paulo”, afirma Mazzarella. A empatia foi tão grande que sua proposta acabou prontamente aceita pela família Lopes. O negócio, finalmente, poderia se expandir. “Nós não vamos para São Paulo de jeito nenhum; não gostamos da cidade. Ter ele ali é estrategicamente fundamental para nós”, diz Juliana.
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1. NAS TINAS DE PASTEURIZAÇÃO são misturados leite, açúcar e gordura. 2. O PRÓXIMO PASSO É DEIXAR A MASSA POR 12 HORAS nas tinas de maturação. De acordo com os Lopes, esse é um dos segredos para o sorvete ficar mais cremoso. 3. EM UM TERCEIRO MOMENTO, a massa e as frutas são misturadas em grandes recipientes. A produção dos sabores é organizada de acordo com a previsão da chegada das frutas. A cada dia, a fábrica recebe apenas um tipo de fruta da Ceagesp, em São Paulo. 4. CASO A MASSA SEJA PARA FAZER PICOLÉS, vai para uma quarta máquina, onde é separada em forminhas e resfriada para endurecer e receber o palito. |
O crescimento começou sem recursos e sem qualquer estratégia de marketing. “Como não tínhamos capacidade de investimento, eu escolhia a dedo os clientes e os pontos. Foi trabalhoso, mas isso gerou uma demanda muito maior que a oferta. Acertamos em cheio”, afirma Mazzarella. A seleção é cautelosa ainda hoje, para os pedidos não extrapolarem o limite de distribuição. “Muitas vezes, temos que falar não. Queremos abrir mercado e, para emplacar cinco mil pontos de venda, não podemos queimar a marca, deixando nossos clientes esperando.”
Apesar do produto diferenciado, a Rochinha tem tido que enfrentar a ameaça das grandes marcas e a disputa com empresas menores. “Nos dias de hoje, se você não tem preço, não vende. Enfrentar as multinacionais é uma briga desleal, mas também estamos perdendo muitos pontos de venda importantes para marcas pequenas”, lamenta Mazzarella. Recentemente, a empresa perdeu um importante cliente, a Lanchonete da Cidade, para a concorrente e também pequena empresa Diletto, cujo faturamento estimado para 2010 chega a R$ 10 milhões. “É uma briga de igual para igual. Em todos os lugares em que operamos tem o regional que dá trabalho. Em São Paulo é o Rochinha”, diz Leandro Scabin, 33 anos, um dos sócios da Diletto Sorvetes.
Além dos pontos de venda dos sorvetes, a Rochinha descobriu recentemente um novo mercado: o de eventos. Em um deles, abriu-se a oportunidade de conquistar a comunidade judaica de São Paulo. “Levei um carrinho de sorvete para o casamento de um amigo meu, judeu. Os noivos entraram no salão jogando picolé”, diz Mazzarella. Alguns dias depois, Lopes foi procurado por rabinos, que acharam a marca perfeita para seguir os preceitos da alimentação judaica. Hoje, os sabores sem leite levam o selo kasher.
FUNDAÇÃO: 1992 SEDE: São Sebastião (SP) O QUE FAZ: Sorvetes em palito e em massa, presentes em 600 pontos de venda da região metropolitana de São Paulo; 200 carrinhos pelo litoral; e 14 lojas da marca FUNCIONÁRIOS: 25 FATURAMENTO 2009: R$ 8 milhões |
O relacionamento com fornecedores, clientes e funcionários é simples e direto, muito semelhante ao dos tempos em que os Lopes viravam noites na cozinha de Rosalina. “O telefone impresso nas embalagens dos sorvetes é o meu próprio ramal”, diz Juliana. Vendedores de carrinhos de picolé podem fazer carreira na empresa. “Trabalhei por nove temporadas, saí da praia com 18 anos”, afirma Miller Augusto, 24 anos, que atua na área administrativa e acaba de se formar em administração de empresas. Os empregados também têm chance de virar empreendedores. Os irmãos gêmeos Joncimar e Johnson Mesquita, 45 anos, passaram de gerentes a donos de um ponto em São Sebastião. “Nós preferimos sempre deixar as lojas para pessoas de confiança e facilitamos as formas de pagamento”, diz Juliana. A gestão é personalista e emocional, mas não faltam regras. Há, por exemplo, padrões de remuneração para todos os funcionários. Inclusive para os membros da família: Lopes e os filhos que atuam no negócio recebem salário em um sistema pró-labore; os cunhados são registrados em carteira.
Os Lopes afirmam que nunca pensaram em vender ou buscar sócios para o negócio. Apesar disso, de acordo com eles, em 2000 receberam do Grupo Hypermarcas uma proposta de compra. “Me perguntaram quanto eu queria pela minha empresa. Eu não tinha ideia. Pedi US$ 2 milhões, que para mim era muito dinheiro. Hoje em dia eu sei que a empresa vale muito mais”, afirma Lopes. A família diz que a proposta foi rapidamente aceita pelo grupo e a venda estava quase formalizada. Mas, antes de assinar os documentos, Lopes queria ir à igreja. “Meu pai sempre foi muito religioso. Para tomar as decisões, ele conversa com Deus”, afirma a filha Josiane. O patriarca conta que a “palavra de Deus” chegou até ele por meio de uma pessoa que frequentava a mesma igreja. “Sem que ela soubesse de nada, me disse que eu não deveria vender minhas bênçãos por prato de lentilha nenhum. Desisti da venda no mesmo minuto, pois entendi que Deus não tinha aprovado o meu contrato”, diz ele. Procurado pela reportagem, o Grupo Hypermarcas afirma não comentar “boatos comerciais”.
As obras da nova fábrica começaram em março deste ano e o término está previsto para o início de 2011. Para não perder a produção artesanal, uma área de mais de 30% dos 8.500 metros quadrados será destinada somente à manipulação de frutas. A decisão por São José dos Campos foi uma escolha estratégica, pois a cidade fica entre São Paulo e o litoral. Além disso, de acordo com a família, a burocracia é menor do que em São Sebastião, onde os entraves para construir uma indústria são muitos. Os Lopes contrataram uma assessoria de imprensa terceirizada para reforçar a imagem da marca e um diretor para estruturar as finanças nesse momento de crescimento.
Após a inauguração da unidade, a empresa se prepara para levar seus sorvetes para outros pontos do país, como Rio de Janeiro, Brasília e Santa Catarina. Hoje, há pedidos até nos EUA e em Portugal. “Precisamos primeiro nos organizar para atender à demanda nacional e depois pensar em uma expansão internacional”, afirma Lopes.
Para a alta temporada, de dezembro a março, que cresce cerca de 40% todos os anos, a Rochinha vai lançar alguns produtos. O cardápio de 29 sabores de picolés e 30 de sorvetes de massa ganhará três novidades: jabuticaba (em picolé); doce de leite (picolé e massa) e brigadeiro (picolé). Além do Caipilé, um sorvete em formato menor para ser consumido com caipirinha.
Sobre a fábrica antiga, Lopes assegura que continuará funcionando. “O charme da Rochinha é esta fábrica daqui. Queremos mantê-la até como uma lembrança.” Lopes e Rosalina não sabem dizer qual será o futuro da empresa, mas garantem que seus três netos já foram atraídos para o negócio. “Desde pequenos, eles não tiram o sorvete da boca!”, diz Lopes, orgulhoso.